Tuesday, April 11, 2006

Just because...


Just because..., originally uploaded by MadeWithLove.

Fui desencantar este texto que escrevinhei no meu antigo blog e apeteceu-me partilhar... A foto também já tem um tempinho.


Improbabilidades
Cinco da tarde. Chego à doca e penso na última vez que tive um cenário destes só para mim. Não me lembro. Não faz diferença porque aprecio-o como se fosse a primeira. A brisa gelada penetra-me até aos ossos mas enfrento-a teimosamente. Procuro na mala a máquina fotográfica. Nunca saio de casa sem a minha fiel companheira. Parece que hoje foi a excepção à regra. Contemplo de novo o cenário. As minhas pálpebras são o diafragma da máquina e espero secretamente que as fotos mentalmente reveladas se mostrem tão perenes quanto as do papel. Os carros passam com frequência. Alguns condutores detêm-se uns instantes, como que a ganhar fôlego para o fim do dia. A quantidade de gaivotas a sobrevoar o rio denuncia que há peixe. Fazem acrobacias no ar e mergulham na água esperando surpreender as suas presas. Ocupo o lugar do passageiro no carro e deixo a porta escancarada. Quero sentir-me parte da doca. Tiro do porta-luvas um livro querido e esquecido e mergulho num mar de letras. Distraio-me constantemente. Ouço vozes humanas. Pescadores. O fedor peixilento e enebriante agarra-se às suas roupas, à sua pele, à sua alma. As canas dobram sobre o rio e esperam o precioso alimento. O sol vai descendo e desenhando novos tons num céu outrora de um azul tão claro e forte. Continuo a sessão fotográfica disparando incessantemente. No horizonte, o céu e a terra envolvem-se num abraço laranja e lilás. Aperto mais o casaco contra o corpo. Leio um pouco mais. Apercebo-me que me embrenhei demasiado na leitura quando deixo de ouvir carros com frequência e quando os olhos já me doem. A lua ocupou o seu lugar na negrura do céu e os candeeiros de rua já acordaram. Preciso esticar as pernas. Ao sair do carro dou conta de uma pequena mancha prateada a brilhar ao luar. Um peixe esquecido? Com uns passos aproximo-me. Mexe-se. Ainda respira. Observo-o com uma curiosidade mórbida. A vida a esvair-se do seu magro corpo. Imaginei-o satisfeito, nadando no rio. Um miar esfomeado dissipa-me os pensamentos. É escanzelado o dono daquele miar, mas caminha graciosamente. Olha-me com grandes olhos negros por uns instantes e dirige-se ao moribundo peixe. Pega-lhe delicadamente e, aproximando-se da berma, lança-o à água.
[10.03.05]

No comments: