As viagens diárias de autocarro nunca são iguais ou monótonas. Sim, o autocarro é um lugar. Não me digam que não. Quando atendo o telemóvel "em viagem" e me perguntam onde estou, respondo "Estou no autocarro." E é um lugar estranho. Primeiro porque põe em causa o conceito de "espaço pessoal". Por vezes acabamos por estar desconfortavelmente perto uns dos outros. Mas isso passa para segundo plano quando as pessoas se envolvem em conversas comuns que chegam a incluir várias zonas do dito transporte. Uma autêntica tertúlia sobre rodas, onde se discute tudo, literalmente. Política, música, família, dinheiro (e falta dele), filosofia, poesia...
Há sempre alguém que me prende a atenção, normalmente pela excentricidade. Ora o velhote que canta "para espantar os males", ora a velhinha vestida com camadas de roupa, envolta num cachecol e gorro infantis (a lembrar um pijama), que prende os ouvintes com a erudição das palavras e do pensamento. É comum as velhotas me falarem das dores e das doenças, dos filhos, dos netos e das memórias que querem desesperadamente que alguém ouça.
Mesmo quando vou a ler, não consigo deixar de olhar pela janela, como se de um filme mudo se tratasse, sempre mutável, sempre em movimento. Há cheiros estranhos e indecifráveis no ar, há adolescentes que entram de telemóvel ao pescoço a "dar música" a toda a gente, há cantores, poetas e filósofos e pessoas que, basicamente, só esperam uma oportunidade para "rebentar", mesmo que seja com o motorista.
Fazia um filme inteirinho só com situações vividas dentro de autocarros.